terça-feira, 16 de março de 2010

Manaus - Roadway


MANAUS, ROADWAY, 1944
(montagem de 4 fragmentos de Jorge Tufic)
Aqui neste cais
um brim de silêncios
veste o meu corpo.

Eu venho dos rios sem leito
e trago em meu sangue
o amargor da atebrina.
O aroma dos campos
no pó dos cabelos.
No imenso tablado do cais
minhas mãos se perdem
nas mãos de meus guias paternos.
E as luzes da cidade
remendam meus trapos.

Estou a dois passos da urbe,
impossível recuar.
O grande relógio da praça
nas curvas do labirinto.
As vísceras suadas,
o tímpano dos bondes,
vozes e sombras se cruzam
nessa antemanhã.
Foi este o princípio
de todos os caminhos
entre círculos e retas, becos,
ruas e avenidas
- já em busca das palavras
que estavam comigo.

2.

Os espinhos da carne
transpiram das telhas
que protegem nosso quarto.
Um quarto de estância
com banheiro coletivo,
passagem coletiva,
sonhos e gemidos coletivos.
Mas além de seus muros
estendia-se o mito,
a estranha sonata que vinha
daquelas noites veladas
pelos lampiões a gás.





E, assim, devagar elas chegam,
no espelho, nas chuvas
em pleno mês de dezembro,
nunca se sabe: as palavras têm
cor e volume, devoram conosco os
restos de uma teimosa vigília.
Mal percebemos, chegaram,
e ainda estamos dormindo.
Assim foi com a cidade e meus trapos,
todos devorados
por um fogo de cisnes.

3-

Colher de pau, bailarina
que se interrompe na sesta
das leves moscas vadias;
colher de pau sobre a mesa,
ao lado da bilha austera,
ladeada por tudo quanto
faz simples a casa pobre.
Colher de pau, tua essência
paira na fome dos bairros,
e buscam-te amortalhada
num silêncio de farinha.
Mas só vazia é que dás
essa impressão de humildade
que poucos conseguem ver.

4-

Esta cidade a que vim,
mais do que vim, me trouxeram.
Menino de calças curtas
não me lembro desse dia,
só me lembro da folinha
cuja tarefa vermelha
traçava a cor do domingo.
Um domingo de sol morno
que me seguia de esguelha
foi comigo ver a praça,
lá me disse: a sombra, amigo,
faz parte deste meu reino.
Anos depois compreendi
que um banco de sombra e limo
fora tudo que ganhei.
Mas na pedra exato aquela
um outro reino eu fundara
quando um sol de plumas novas
dessa pedra rebentara.

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