sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Poema extraído do Livro " Quando as Noites Voavam"

QUE SERÁ DE TI, AMAZÔNIA ?

( II )



(JOrge Tufic)



Que será de ti, Amazônia,
enquanto o homem que te desfruta
considerar-te perene, imortal
como se imagina um duende ?

Que será de ti, Amazônia,
enquanto se pensa no teu destino
sem nunca separar-te dos interesses
daquele que te golpeia,
te reduz e te maltrata ?

Que será de ti, Amazônia,
enquanto se teima em desconhecer
que teu reino se acaba
onde a tua imensa vegetação termina ?

Que será de ti, Amazônia,
enquanto os cegos herdeiros
do Lêmure implacável,
buscam fórmulas vazias
para explorar-te racionalmente,
quando se sabe que os fins econômicos
já são, por si mesmos,
irracionais ?

Que será de ti, Amazônia,
enquanto não forem avaliadas tuas perdas
e teu desgaste
em quatrocentos anos de falsa
prosperidade para o homem;
e de lenta ,
lentíssima agonia
para os sonhos e as riquezas
que te habitam ?

Que será de ti, Amazônia,
enquanto o índio que te protege
e guarda os teus mistérios,
continuar sendo reduzido
e transformado em caboclo ?

Que será de ti, Amazônia,
enquanto o revolvimento de teu solo,
à cata de minérios,
envenenar os teus rios ;
e as toras de madeira submersas
desabarem sobre ti
numa queda insalubre e frenética
de chuvas ácidas ?

Que será de ti, Amazônia,
enquanto o desmatamento e as queimadas
transferem para os teus ares o sezão
dos pântanos
e a temperatura dos infernos ?


Que será de ti, Amazônia,
quando tuas lendas não tiverem mais
onde pousar; e a doce flauta
do uirapuru
quebrar-se numa profunda elegia
sobre os rios que minguam
e os areais que avançam ?

Que será de ti, Amazônia,
última página do Gênesis,
quando os seres que fazem a tua escrita
enigmática,
mergulharem na usura
que te rebaixa
aos olhos do mundo ?

Que será de ti, Amazônia,
se continuas espoliada e sujeita
ao voto
que elege os teus algozes ?

Que será de ti, Amazônia,
cujo tamanho incomoda pela ausência
de amor,
e cuja perda nem mesmo um rio
de lágrimas
há-de chorar-te com justiça ?

Que será de ti, Amazônia,
navegável piscosa hidra mesopotâmica
resistência dos fracos
buzina dos ermos
igaçaba de fogos-fátuos
agora que teus peixes,
de há muito impedidos de crescer
e desovar corretamente
já não saciam a fome dos que
nada fizeram
para ver o futuro ?

Que será de ti, Amazônia,
grandeza física que,
no entanto,
pode caber dentro de um ninho qualquer,
desde que ele tenha a leveza
de tuas palhas
e a úmida ternura
dos ventos que te embalam ?

Que será de ti, Amazônia,
enquanto as crianças do globo
não souberem te amar em plenitude,
ou seja,
do bicho mais rasteiro
às frondes mais altas de teus bosques
e teus igapós ?

Que será de ti, Amazônia,
se as fronteiras que te abraçam
numa ciranda geográfica de isolamento
e fraternidade,
não aprenderem também a sentir
o pulsar de teus mares sepultos
e a beber, em tuas águas,
a música das sombras ?

Que será de ti, Amazônia,
paraíso da natividade cósmica
porto de lenha
sertão de especiarias
inferno verde
berço do progresso
refúgio de degredados
sorvedouro de talentos
remate dos vencedores,
quando és, praticamente,
a última baliza do verde
com as terras-do-sem-fim ?

Que será de ti, Amazônia,
esfinge dos néscios
apetite dos glutões
motivo de inspiração e de escárnio
natureza morta
peixe colorido de estrelas importadas
autofagia mítica
cipoal de batalhas demiúrgicas
aleijão vegetativo
sementeira de astronaves,
agora que meia dúzia de sábios
te colocam no banco dos réus
e te julgam
em nome da ecologia ?

Que será de ti, Amazônia,
quando a própria ecologia,
no sentido global e verdadeiro,
deve partir da humanização urbana ?
Não é fácil acreditar nas palavras
de quem se declara a favor
da Natureza
se cultiva a poluição
e contribui para a miséria.

Que será de ti, Amazônia ?
Os tucanos pedem socorro.
Ao fugirem das queimadas,
eles invadem as cidades em busca
de comida. Primeiro foi o homem
das margens e terras firmes
que se evadiu para sempre.
Agora são as aves de tuas matas
que se desfazem na escuridão.

Os nichos sagrados estão em chamas.
Teu coração também se revolta
e sangra, Amazônia.
Fetos de carbono
imitam pajés enforcados
nas enviras do luar.

Museu do Índio (Manaus, 2009)

SARAH RODRIGUES, prefácio de seu livro

A ALDEIA, O CAIS E A PARTIDA
Jorge Tufic

São raros, hoje, os textos de poesia que não temem a crítica por assumir uma postura independente da parafernália daqueles que estão mais para as letras de música pop, do que mesmo para uma lírica moderna ainda em paz com a arte do soneto, do verso livre, das redondilhas que lembram Rosália de Castro, Florbela Espanca, Auta de Souza ou Cecília Meireles, a par de cânticos e louvores da terra, quase todos evocativos de Ronald de Carvalho e Judas Isgorogota. Pois este ¨Poemas para minha aldeia¨, de Sarah Rodrigues, traz-nos de volta as delícias de todo esse cancioneiro perdido entre as névoas de um passado recente, sem, contudo, deixar de ombrear-se aos maiores de nossa atualidade, quer pela escolha e desenvolvimento de seus temas, quer pelo senso lapidário de suas estrofes solares, com maior empenho formal quando elege o soneto como seu modo predileto de forjar os momentos eternos da vida e da morte. Exemplos disto iremos encontrar naqueles intitulados de ¨O corpo da paixão não terá sono¨, ¨O olhar se perde agora na moldura¨, ¨Coração deserto¨, ¨A velha seringueira¨ , o dedicado a seu pai, para citar apenas alguns de uma série realmente antológica. Os demais são poemas intercalados que tratam de um cotidiano que oscila entre os painéis citadinos ou periféricos, e as raízes amazônicas : seu amor à terra, com a imagem do rio, das paisagens, dos fenômenos cromáticos e meteorológicos, num diálogo permanente de quem ama a utopia e sabe cantá-la tão bem quanto os pássaros mágicos do lendário nativo. Ou seja, daquele que só os poetas compreendem nas vozes da natureza.
Abrem-se vários os ângulos de análise e surpreendentes descobertas, através das quais a poesia de Sarah Rodrigues vai-se entregando ao leitor deste livro, não tendo passado ao largo, para Jurandyr Bezerra, ¨a palavra com a significação própria, preocupando-se menos com a imagem simbólica ou com a plurisignificação verbal¨; e mais adiante: ¨sabendo movê-la como o canto e conhecendo o lúdico que ela, a palavra, pode representar¨. Assim sendo, aparentes lugares-comuns serão utilizados no entremeio dos blocos vérsicos, apenas enquanto o estalo do poema adquire a carga necessária para chegar ao final. Neste ¨Aqui jaz a lua¨, que também não passa em branco ao decano da Academia Paraense de Letras, temos o seguinte fecho: Aqui jaz a lua / minguante em pedaços / nua em meus braços / num quarto crescente. O declamatório e o contido, as baladas e poemas de reflexão profunda, a exemplo de ¨Tarde de Chuva¨, e lamentos como ¨Chora, Belém¨, dentre tantas outras jóias desse relicário poético, são rumores de uma única nascente afetiva e telúrica. Daí a tônica do amoroso que reivindica a esperança que se debate entre a máquina que tudo destrói e os pobres nichos sagrados extintos pelo fogo.
Compõe-se a obra de 29 sonetos e 35 poemas, aqueles no ¨estilo petrarqueano¨ e estes de ¨formas diversas¨, podendo-se ter uma idéia do roteiro estético-criador percorrido por Sarah, ainda e sobretudo com a primazia dos secretos estigmas e azulados cenários na configuração dos contrastes da própria existência humana, uma síntese dialética em que a poesia ou a busca da metáfora insubstituível, ou, ainda, ¨o caminho do poder ir sendo¨, como quer Bandeira Tribuzi, celebram as rosas de cada amanhecer e ¨o social enquanto arte¨, na feliz expressão de Nauro Machado. Da saga inteira, portanto, basta-nos pinçar, ao mero acaso, dois exemplares apenas de quantos enriquecem estas páginas – um soneto e um poema de pequeno porte -, para que todo um corpus nos seja revelado. Trata-se de duas obras primas, ¨Eu e o Mar¨ e ¨Vazio Inverno¨, nas quais se manifesta o arrojo das imagens ou impressões do mundo, irradiando-se de ambas as mais inusitadas sinestesias, metonímias e hajam figuras mais, consideradas de pensamento. E aqui chegando me permito transcrever, a seguir, estes conceitos de David Daiches: ¨Não existe um método certo para tratar os problemas literários, uma atitude única para abordar as obras de literatura, capaz de proporcionar todas as verdades significantes que lhes dizem respeito. A crítica é sempre conjectural, parcial, oblíqua. Isto não significa proclamar, de modo algum, a inexistência de uma escala de valores, ou que devamos apelar para o mero gosto pessoal, o vago impressionismo, ou um simples arrebatamento sentimental¨. Entrementes, não sendo propriamente um crítico quem escreve este prefácio, seja-lhe permitido extravasar como deve as sinceras emoções naquilo que bate com o seu eterno aprendizado, jamais lhe tendo sido possível conter-se diante do amor, nem das lágrimas, nem da renúncia. Como neste ¨Soneto de uma Saudade¨, da mesma Sarah Rodrigues:

De minha alma a paixão te foi servida
e o que ficou de nós, dói-me dizer,
mas é saudade a síntese colhida
no orgasmo solitário do meu ser.

Que mais no amor eu tenho que sofrer
para que amando o sonho tenha vida?
Traga teus lábios nus, dá-me a beber,
e mate o que nasceu da despedida!

Guardei-me na esperança te esperando,
sofrendo pelo bem de estar te amando;
tão certo de que certo a tua vontade!

Mas hoje, infelizmente, hei-me ao tormento,
calada nessa voz de sentimento
e pregada na cruz desta saudade!

Ressalte-se, neste breve seguimento, a espantosa versatilidade da autora, que também dá lugar ao esquivo soneto alexandrino, além de inserir um glossário completo de termos da região amazônica, o qual, raro no gênero, poderá servir como guia em outras andanças bibliográficas a serviço da pesquisa do folclore e das lendas coletadas pelos etnólogos e historiadores da gleba de Bahira, Makunaima, Ajuricaba, isto do lado de lá; do lado de cá estão esses transfigurados entes de nossa estima e profunda admiração, cujos nomes rebrotam do mais puro afeto e das mais gratas lembranças de nossa juventude: Bruno de Menezes, Nazareno Tourinho, Alonso Rocha, Jurandyr Bezerra, Agildo Monteiro, Georgenor Franco, Benedicto Nunes, Max Martins, Rui Guilherme Barata, entre outros amigos e mestres das décadas 50 e 60 do século XX! O que mais dizer, enquanto se retarda o vero prazer dos leitores, bem aqui ao lado? Ora, bem...
A segunda e demais leituras dos poemas e sonetos deste volume, foram feitas como quem lê uma partitura. Seria a arte ou o exercício de ¨olhar¨ os sentimentos da autora, medir-lhe os sonhos travadas pelo arbítrio da linguagem, auscultar-lhe as enormes potencialidades que lhe restam escondidas por trás deste verdadeiro êxito em sua estréia como poeta. Enfim, o que já é, ressoa e cresce à medida que lemos e avaliamos sob o rigor da experiência. Ela começa, de fato, por onde muitos terminam. Senão, vejamos: quem de nós, bastante maturados e surrados pelo ofício, não assinaria alguns destes sonetos e poemas dessa coletânea que, a partir de agora, hão de ver aqueles que a julgaram e lhe deram o parecer da ilustre Academia Paraense de Letras, como será recebida por gregos e troianos. De certo e sem exagero, com palmas merecidas e louros tecidos pelo carinho dos deuses.
A aldeia torna-se metrópole, ganha o espaço das grandes partidas, conquista o mundo.

Resenha literária

O SONHO É NOSSA CHAMA

Este novo livro do grande poeta cearense Francisco Carvalho, surpreende pela totalidade poética, liberta afinal de separações estróficas, quando traz de volta aos leitores sonetos já publicados e dez inéditos, miniaturas essas que, por sua vez e pelo simples motivo de que as rimas chegaram ao seu máximo limite toante ou consonante, extrapolam dos cânones tradicionais, sem, com isso, deixarem de inventar e reinventar a utopia de Petrarca, Camões, Jorge de Lima, entre tantos outros, nunca em desnível com os mais ferrenhos cultores desse gênero de arte, tão brasileiro quanto universal. Nota-se aí, por outro ângulo menos visível a quem não acompanha, de perto, a trajetória do autor, que a maioria deles passara pelo crivo de uma releitura crítica, e foram selecionados.
Em ¨Algumas Palavras¨, nos explica o mestre: ¨Não adianta citar nomes, mas é sabido que os verdadeiros poetas estão honestamente empenhados na produção de uma arte poética que se distingue pela universalidade da linguagem e pela prática de uma forma mais flexível às exigências da modernidade. Escrevendo sonetos ou poemas em versos livres, revelam qualidades literárias que os consagram à admiração da posteridade. Afinal de contas, se o soneto está realmente fora de moda, ultrapassado na forma e no conteúdo, por que tanta gente continua a escrevê-lo com tamanha convicção? Deve existir alguma explicação para isso. Há quem supunha que a preferência pelo soneto seria uma forma de opção pelo caminho mais fácil. Será?¨
A prova em contrário, ou a resposta cabível, nós vamos encontrar ao longo dessas 98 páginas da excelente coletânea de 170 sonetos éditos e 10 inéditos, dando-nos estes a leveza de uma nuvem-personagem que nos encanta e tira o amargor da vida inteira através de uma dança em que vai se detendo, ora como ¨pombas que voltam do exílio¨, ora em diversos lugares da infância do poeta, ora ainda a esperar numa esquina, desdobrando-se e metamorfoseando-se como coisa real ou ¨engano dos sentidos¨. ¨A Nuvem e o pássaro¨, aliàs, já foi título de um outro livro de Francisco Carvalho.
Tudo para indicar, se é que deva ser necessário, o que logo sobressai da primeira impressão de leitura, ou seja, a unidade quase palpável do texto, agora tomado na sua totalidade, e mais que isso, a emoção que transmite de um roteiro estético carregado de símbolos e metáforas que também incursionam, mas sem transbordamentos ou evasivas, pelos domínios da metalinguagem. Francisco Carvalho consegue ler a si mesmo do jeito que gostaria de fazê-lo com os outros. E atinge o máximo. Parabéns, amigo!

Jorge Tufic

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

O LIVRO

O LIVRO

Jorge Tufic

para Sérgio Braga


Não se mude o teu formato
ó livro de quatro quinas,
pois é neste mundo exato
que estão as coisas divinas.

2

O livro, repositório
de tanto conhecimento,
desafia o provisório
na escrita de um monumento.

3

De tantos livros que empilho
onde está o número um?
Uns aos outros se dão brilho,
a claridade é comum.

4

Os quilômetros que tenho
de leituras nesta vida,
dão-me a paz de um velho engenho
sobre a riqueza auferida.

5

O livro – tão fácil tê-lo
como o pão, nossa alegria;
qualquer um pode fazê-lo
com as auroras do seu dia.

6

O livro não tem tamanho
nem se define o saber,
sem ele – que mundo estranho,
nada fácil de entender.


7

Pedras gravadas a mão
e rolos de pergaminho...
tantos caminhos se vão
para tê-lo em meu caminho.

8

Repousado sobre a mesa
ou de lombada na estante,
o livro guarda a beleza
do mais incrível diamante.

9

Foi nas página de um livro
que mergulhei feito um peixe,
destas águas não me livro,
de estar só nunca me queixe.

10

O livro, a lavra, a vontade
de ver além, muito além,
nele se aprende a verdade
tão vária, tão de ninguém.

11

Diz o poeta que Cristo
não tinha livros nem nada,
mas graças a tudo isto,
temos a História Sagrada.

12

Ser autor, ver tua cara
junto a gráfica escritura!
Não parece coisa rara,
é do livro essa loucura.

Arthur Engrácio, Aluísio Sampaio e Jorge Tufic


Era a equipe do Suplemento Literário do Clube da Madrugada,
nos idos das décadas 60 e 70 do século XX.

América do Sul (Jorge Tufic)

AMÉRICA DO SUL

Jorge Tufic


Que o boné de Pablo Neruda
e a lágrima fluvial de Santos Chocano,
e o grito de Allende
(enquanto os fuzis do terror e do medo
repetiam o massacre da liberdade),
venham flocar este chão consagrado
por tantos modos e cantos diferentes,
oh América do Sul.
Os cravos de tuas noites mergulham
na plumagem das Cordilheiras,
e os ramos da paz que te ilumina
e o relincho das pedras que desenham
bizontes e tempestades,
pousam como fósseis alados
em tuas crinas de esmeralda.
De Santa Marta à Terra do Fogo
tuas espigas rebentam colares de jade
e cintilam nas máscaras de ouro
roubadas aos templos do sol
e às pirâmides da lua.
E ao sopro nativo da flauta
exilada entre colméias,
um tesouro de vasos, borboletas
e animais de uma fauna imaginária,
sacode o pó da argila e do granito
em suaves movimentos.
Atlantes e Laoccontes
vigiam tuas muralhas indormidas,
mas deixam livres as fronteiras do sonho.




II

Com a espada de Bolívar
e a prosa rubra e latejante de Sarmiento;
com as vestes de Antonio Conselheiro
e a nervura semântica de Euclides da Cunha;
com a suavidade de um verso de Lugones
e os contos gauchescos de Simões Lopes Neto;
com os arcos e flechas dos incas e aimarás
e a clepsidra das ruínas de Zaculén;
com as cinzas do uirapuru do Amazonas
e os depurados muirakitãs do Espelho da Lua,
eu te louvo, América do Sul,
agora que revejo tua cerâmica do Marajó,
tuas matas e teus rios,
tuas cidades e tuas pontes,
teus barcos possantes, tuas fábricas
e tuas manchetes; e ouço a voz
dos teus regatos, as canções de teus povos
e vejo, deslumbrado,
que uma ciranda feita de arrulhos e girassóis
te enlaça, constantemente,
do Atlântico semeado de praias
ao Pacífico de pássaros
e fontes azuladas.


III

Quantos martírios e sucessos
pontilham tuas manchas ocres
em cada solo ferido ou conquistado!
Lembras-te, por acaso, dos gestos em forma de dança
de teus ancestrais caribenhos?
Do milho cor de cereja dos Aruakes?
Dos artefatos barrancoides dos Walpés?
Dos dialetos tecidos com a envira do silêncio
e a toada dos riachos deixados a caminho?
Da antigüidade seletiva dos tucanos,
muras e cambebas?
Lembras-te, por acaso,
da bola de sernambi que estes últimos
te deram, ainda em pleno século XVII,
e do jogo que eles jogavam
num campo sem traves e sem torcidas?


Numa rede de dormir
os brancos degustam teu massacre
mas olvidam o teu legado,
esse imenso legado que sucedera ao jugo,
impiedoso e cruel,
daqueles teus primeiros habitantes,
plantadores de sombras,
raízes da terra.
Guitarras, malária, devastação e confisco,
eles trouxeram de tudo.
Mas tomam caxiri no delicado suporte
de uma cuia rústica ou pitinga;
alimentam-se de farinha de mandioca
e têm muito de si no caboclo que se espreguiça
para não ir ao trabalho;
e têm muito de si na mestiça que se vende
por las calles y los pueblos;
e têm muito de si, também,
nessa fusão de sons e melodias
que fizeram do nheengatu das águas pretas
a língua franca dos mitos
e do lendário esquecido.







IV

Imitas um coração populoso e tranqüilo.
Tens a forma de harpa ou alaúde
com doze cordas festivas.
E ainda podes ser vista como um rosto enigmático
voltado para si mesmo.
Desigualdades e semelhanças predominam,
assim, de um lado e de outro,
entre vales, planícies e altiplanos.
Em qualquer Atlas se lê, por exemplo,
que há fome na Bolívia,
que há tango, festas e greves na Argentina,
que o Chile exporta minérios e vinhos,
que o Brasil é o maior destes países,
que o Equador tem reservas de prata e ouro,
que o Peru não se expande,
que o Paraguai continua bloqueado
sem saídas para o mar.
Em teu próprio nome, oh América do Sul,
e em nome da história que te deram,
hás de entender, no entanto,
que ninguém pode ser feliz
quando está cercado pela miséria,
seja a miséria do egoísmo,
seja a miséria das guerras;
que ninguém pode ter paz
quando há golpes e matanças
do outro lado de suas fronteiras.
Hás de saber entrementes que,
por cima da fala dos caudilhos,
paira a linguagem fluida ou tormentosa
daqueles que te celebram;
inclusive daqueles que apodrecem em tuas mansardas
ou se debruçam nas torres de vidro;
ou daqueles, ainda, que se confundem
com os traços das telas que azedam em teus sótãos
e em tuas águas-furtadas.
Estes homens de letras ou picassos anônimos
entregues à corrosão que desfigura
e ao abandono que mata.


V

Quantos equívocos te cercam
antes e após a descoberta, por ti,
do torno do oleiro, da roda e do arado?
Que simpáticas figuras transoceânicas
poderiam ter-te doado,
oh América do Sul,
carrinhos votivos de cerâmica,
travesseiros de barro
e selos em forma de bujarronas?
E as tuas escritas?
Terão sido trazidas por quem
- fenícios, gregos, romanos –
se colocam na origem de teus índios?
Fascina acreditar, em vez disso,
que provenhas, isto sim,
de alguma centelha que se fez Avalon,
Atlântida ou Atlas,
segundo escrevem as aves migratórias
quando te buscam nos pélagos,
e adivinham teus ecos profundos
nas cavidades do espanto.


VI

A cidade perdida dos incas
são tantas cidades quanto as portadas
que levam à presença do sol;
e dali ao rio de espelhos e cardumes intactos,
e dali às cavernas talhadas a ouro,
e dali aos túmulos daqueles que sucumbiram
ao peso dos colossos que protegem a montanha
das patas ecoantes de Espanha.

Em cada milímetro quadrado
das alturas que saltaram de mares incalculáveis,
Amarus confundem a inteligência
dos homens de Pizarro.
Labirintos ficaram, boiunas coleiam
na ouriversaria das auroras.
E ninguém poderá decifrá-las.

Para Iucay se evadira Manco.
E uma das primeiras guerrilhas da história
consegue fazer das trilhas enganosas
o desgastante baralho das Cordilheiras.
A imagem de raios solares
com mais de cem toneladas,
em que leito de Vilcabamba
terá se consumido em miríades de estrelas?

Em Cajamarca, enfim, morrera Atahualpa.
Em Viticos, chega a vez de Manco Inca.
Sayri Tupã e Tito Cusi também foram imolados.
Tupac Amaru expira em Cuzco
levando no olhar a música do império.









VII

Grande é o solar do tempo nesta aldeia
onde um galope nunca se interrompe.
Este chão de Pizarro em Guamachucho
de lavas contraídas pelo medo.
Escarpas traçam rápidas figuras,
pousam brilhos de séculos vencidos.
E um velho terremoto, agora fóssil,
semelha um tigre às costas de um penedo.
A noite é um vinho branco. Mas o sangue
que transborda do lago, não descansa:
quer vingar a cobiça, o fogo e a traição,
estes três assassinos de Atahualpa,
daquele em cujo peito o sol dos incas
despedaça o seu último clarão.



















VIII

Nos porões soterrados debaixo
das cidades, deuses animais de terracota
aparecem ao lado da serpente,
e ao lado da serpente
paradigmas antropomórficos.
Foi assim que teus nativos,
pescadores de Valdívia,
dominaram os ornatos circulares:
perfis abstratos,
bizarras entidades híbridas
sobressaem nos relevos celestes;
e ao lado destes, ardósias cônicas,
traçados olmecas.

Um portal contendo símbolos xamãs
e sarcófagos dourados,
exterioriza o silêncio dos mortos na estática
de teus músculos altivos
prateados de neve.

A Quinta Era, afirmam ali,
pertence a Tonatiú, o deus Sol,
habitante dos leques das palmeiras;
e há de ser confirmada por graves,
extensos abalos.
Pumas alertam para as ameaças que sobem
das Ilhas Arqueanas.


IX (a lição dos rios)

Tentando lavar este sangue
inutilmente derramado,
de cinco mil metros de altura despenca o Vilcanota;
ele vai mudando de nomes
até unir-se às águas revoltas
do lendário Urubamba.
Este, por sua vez, se socorre do Apurimac,
quando formam, juntos,
o Rio Amazonas.

Muito tarde, porém.
Um grande exemplo despercebido.

Esses rumores até hoje incessantes,
este chamado das vertentes comuns,
somente os poetas o sabem distinguir
na diversidade que amalgama
e na dor que ensina.


X (balada enquanto seja)

Ao contrário de outras águas,
nosso rio é movimento,
serpe andina em debandada
vai ele em busca do mar;
desde que nasce de um fio
por ondas rola barrento,
vem à tona e vira vento,
é estirão que sai do nada.

Rio de lendas ficou,
matreiro, curvo e norato,
seu berço de concha e lua,
com três nomes de batismo,
três caminhos sete bocas
por onde bebe a tormenta;
mas tem mágicas, puçangas,
e a cada estória, se aumenta.

Pântano cósmico, diz-se
por quem o lê pelo avesso,
por quem ouve a queixa inata,
por quem adentra seus peixes,
por quem taboca faz beiço
e sopra o fogo da enchente,
pois este rio é começo
da febre que torra a gente.

Ao contrário de outras águas,
o Amazonas, como um todo,
pode tornar a seu fio
como náufrago do lodo.


XI (Thiago de Mello)

Por caminhos de San Tiago,
volta o poeta das angras
a quem doara o seu canto
pela causa dos humildes.

Levara o corpo sadio,
como quem leva a esperança
marcada a fogo no brigue
que, novo, se lança ao mar.

Os Estatutos do Homem
riscando o teto da noite
com seus mastros decididos,
quantos vilões não cegaram!

Mas, igual à copa náutica
das sapopemas gigantes,
que pelas vias de Tiago
desprendem flocos de sonho,

retorna, depois da luta
para o feno das raízes:
a copa – rica de estrelas,
o tronco – de cicatrizes.


XII (a Pedra do Reino)


Como então esquecer,
neste painel de teus milagres,
oh América do Sul,
a oficina armorial desse múltiplo Ariano Suassuna,
a poesia e a prosa que se deixam fundir
em seu romance d´A Pedra do Reino?
Assim também, igualmente,
como esquecer os poemas de Carlos Newton Júnior,
a cerâmica de Côca,
as lâminas e os palimpsestos de Virgílio Maia
ou a tenda agreste, mística e versátil de Audifax Rios?
E como esquecer as andanças dos ¨padeiros¨cearenses
em busca das cacimbas,
do aboio crepuscular,
do alpendre de seus avós e da espada
de algum rei com sua túnica de abelhas?
Pois é das artes desse Ariano vulcânico
e de seus valerosos cavaleiros,
as surpreendentes iluminogravuras,
diante das quais apenas o arco-íris, o novilúnio
e as doze talhas apócrifas da Via Dolorosa,
não são réplicas inúteis.


XIII (entrefala e louvação)


Deixemos, portanto, as amoras,
o etéreo veludo celeste, o filme vazio,
a novela das oito
e as ruas por onde não passaram
bandeiras despedaçadas por um grito maior
que a esperança dos mortos.

Deixemos de lado as violetas
que ardem nos versos prematuros
daqueles que nunca percebem o gemido
das salamandras
nem a fuga dos girassóis alucinados.

Deixemos de lado o jarro de Matisse,
a gôndola que imita o cisne de Isolda,
as olheiras roxas das janelas caiadas
pelo terror dos massacres.

Louvemos Neruda que, em sorvos miúdos,
provara do vinho amassado com a terra,
o suor e as lágrimas de quantos,
no Chile, na Espanha e na Turquia,
conseguiram, em seus momentos finais,
erguer a face do entulho e da lama,
cuspir na bota dos tiranos.

Louvemos Neruda pelos gestos perenes
de salvar um carneiro da morte,
uma rosa da escuridão e muitos,
centenas de amigos,
do cárcere infecto e da bofetada humilhante.

Saudemos Neruda
com uma taça de beija-flores.


XIV (sursum corda habemus)


O giro vesperal das andorinhas
sobrevoa os transcursos das cordilheiras;
paira, depois, sobre os telhados gastos
pelo mofo dos armários vazios
e o esquecimento das chuvas.
Elas tomam as sereias de tuas falanges,
dedilham a ira dos terremotos.
Mais do que nunca teu coração vacila,
mas sente-se pleno em curtir a polêmica união
entre o Ocidente dos filósofos
e a pátria dos cardos ensolarados.
Terá sido esta a pausa dos monumentos,
o tremor que se estabiliza nos ossos,
a reflexão que se deixou cair das pálpebras de água
no enterro dos navios.

Uma sombra te acompanha desde que nasceste,
orográfico e triste,
de pais que vestiam a paisagem dos trens de ferro
com os andrajos da mulher de Bolívar,
a insepulta de Paita.
Teus versos são lições de uma geografia da alma,
rochedos floridos de ternura.
Soltos na madrugada,
eles rastreiam fragrâncias, matizes,
números e signos gravados na espuma
e no cansaço das festas.
São metáforas da hora incalculável,
a incrível marca do passageiro.

Depois das estradas, Neruda,
o amor te concedera uma pausa,
um silêncio neutro que irrompe dos tanques
cobertos pelo trigo;
uma pausa que pergunta a cada coisa
se tem algo mais. E a cada palavra
endereça uma rosa. Neruda épico, lírico,
e que tampouco deixa de seguir os passos noturnos
de Lautrèamont, de Pascal e dos Três Mosqueteiros.


Teus cantos são cantarias de luar,
pólens de ouro e neblina.

Oh América do Sul.

(publicado no jornal O PÃO de Fortaleza-CE, Ano V-No. 36-em 13-12-1996). Atualizado em 2008.