segunda-feira, 22 de junho de 2009

Mais uma da Bienal Acre

BIENAL DA FLORESTA DO LIVRO E DA LEITURA DO ACRE (Ignácio de Loyola Brandão)

"Não abrace táxi, junte com cambito"
RIO BRANCO - Se alguém pedir: por favor, pode me destentar este cheque, e você souber que o sujeito é farinha de cruzeiro, destente. Se tiver dinheiro, tudo bem, é tarefa que você pode realizar sem abraçar táxi. Vai ser como juntar com cambito. E se avistar um homem usando bosoroca não estranhe, ele é homem mesmo. Ao ouvir “cuida, menina”, não se preocupe. Agora, saindo por ai, cuidado com as peremas. Grande e vasto é o Brasil, digo sempre, sem medo do clichê. Porque é mesmo.

Felizmente, viajar por causa da literatura tem me ajudado a conhecer o país e, principalmente, descobrir as múltiplas variações de nossa língua. Vou incorporando aos meus caderninhos os vocabulários locais, além de trazer dicionários regionais. Destentar é descontar. Abraçar táxi é trabalho difícil (diga tachi e não táxi), é sofrer. Bosoroca é uma bolsinha onde se carregam cartuchos. Cuida, menina significa se apresse, avie-se! Farinha de cruzeiro é gente boa, confiável, enquanto juntar com cambito é coisa fácil de fazer. Peremas são mulheres dadas, oferecidas, assanhadas e até mais do que isso.

Aos dicionários de gauchês e e de pernambucanês, já acrescentei o baianês e o cearês. Agora tenho o acreano, do Gilberto Braga de Mello, delicioso. Gilberto, como todo acreano, firma pé. Apesar da reforma ortográfica, os acreanos, com E, se recusam a se tornar acrianos, com I. Que se mantenha o E, clamam, indignados. Ouçamos, minha gente, essas vozes distantes, elas não estão separadas do Brasil.

Eu tinha saído de minha palestra no auditório da Filmoteca que está acoplada a Biblioteca Estadual, uma preciosidade encravada no centro de Rio Branco, a capital. Um edifício moderno, funcional, com grandes janelas, muita luz, internet com acesso grátis, chão sofisticado com ladrilhos hidráulicos, originais, vindos do antigo prédio que havia no lugar. Uma das mais belas bibliotecas que vi no Brasil, opinião compartilhada por um especialista de gabarito, José Castilho Marques Neto, que comanda o Plano Nacional do Livro e Leitura e, encantado, não se cansou de fotografar tudo. Os acreanos (com E) estão dando uma lição ao Brasil em matéria de biblioteca.

A biblioteca fica de frente da praça onde aconteceu a primeira Bienal da Floresta do Livro e da Leitura, nome poético, para um evento ocorrido em 35 stands de livrarias e editoras, alem do uso de auditórios por toda a cidade. A idéia da Bienal foi do jovem governador Binho Marques que convidou Pedro Vicente Costa Sobrinho, um potiguar naturalizado acreano, e Helena Carloni, que dirige a bela (repito) biblioteca. Juntou-se a eles Daniel Zen, presidente da Fundação Cultural. E tudo aconteceu.

O homenageado foi uma figura singular e sempre bem-humorada, o contador de histórias e artista plástico Francisco Gregório Filho, cuja figura lembra um patriarca com sua barba branca e magreza de um asceta. Um homem que há meio século batalha pela cultura acreana, tendo sido várias vezes presidente da Fundação Cultural do Estado. Acreanos são Chico Mendes, Marina Silva, Armando Nogueira, João Donato, Glória Peres. Cerca de 40 escritores agitaram a semana, entre eles Luiz Ruffato, Marcus Acioly, Marcio de Souza, Fernando Monteiro, Luiz Galdino, Nelson Patriota, Jorge Tufic, Fabio Lucas, Homero Fonseca, Jomard Muniz de Britto, Alexei Bueno, Gilberto Mendonça Telles. Tudo bancado pelo governo. Clodomir Monteiro, presidente da Academia Acreana de Letras, nomeou a Fabio Lucas e a mim membros correspondentes da AAL. Somos de lá e somos de cá. Academias se abrem umas as outras.

“Olhe para cima, verá isso apenas aqui,”dizia Val Fernandes, fotógrafa que dia e noite, sem parar, registrou cada momento, cada pessoa, cada gesto na Bienal. Às margens do rio Acre, um céu turquesa, de filmes orientais, numa cor que nenhum impressionista conseguiria produzir, estendia-se avassalador sobre nós, enquanto cervejas geladas e empadas enormes chegavam na mesa deste bar do Mercado Velho, construído em 1929, e recém restaurado. Para um lado, as águas seguem em direção ao rio Purus, que penetra no Peru. Pelo outro, vão em direção à Bolívia, marcando fronteira em longa extensão. O poeta Naylor George, apaixonado pela sua cidade, conhecedor de cada canto, cada prédio, cada rua, cicerone dedicado, me diz que daqui é mais fácil chegar ao Machu Pichu que a São Paulo. Aqui estamos mais próximos dos Incas e Maias, se quisermos nos exceder na imaginação.

No rio, lá embaixo, catraias navegavam de uma margem à outra. Custa 50 centavos a travessia. Foi lembrado o tempo em que havia dois cinemas na cidade, um no Primeiro, outro no Segundo distrito. Um dos ricos, outro dos pobres. Em Rio Branco pode-se dizer que, como em Paris, há rive gauche e rive droite. O filme era o mesmo nos dois cinemas, as sessões começavam com diferença de horários. Assim, terminado o primeiro rolo em um, o catraieiro Goiaba, figura popular, agarrava a lata e corria, atravessava o rio, no braço, a remo, entregava no cinema. A sessão inteira era ir e vir. Dias de enchente, águas revoltas, sofria o pobre Goiaba. Dizem que ele nunca trocou um rolo.

Depois de visitar o mercado de verduras e frutas (que nada tem a ver com o mercado antigo, tombado), onde pode-se comprar a banana comprida (cada uma tem entre 30 e 40 centimetros), a farinha de mandioca amarela, a pimenta ou castanhas do Pará preparadas artesanalmente, saborosas, atravesse para o Segundo Distrito e percorra as casas e lojas restauradas que pertenceram aos sírios libaneses, primeiros comerciantes na fundação da cidade. Caminhe pelo calçadão à beira rio cheio de bancas de flores amazônicas, entre elas a Uirapuru e a Caatinga de mulata e de mangueiras centenárias tombadas pelo Patrimônio.

Aqui nos idos 900 ancoravam os batelões e as chatas que traziam mercadorias da Europa para os ricos (as mulheres usavam vestidos com alças de ouro), que freqüentavam o fechadíssimo, Tentamen, clube da elite, restaurado em todo seu esplendor e hoje é alugado para festas e eventos. Ainda existem exemplares gigantes do Apui, arvore cuja seiva os índios usavam para colar ossos fraturados. Vá até a gameleira imensa onde a cidade se iniciou. Diante do rio, o bar do Grassil Roque com um caldinho de feijão fervente de explodir a língua. Ao lado, na Varanda do Porto, do Telmo, bebe-se cerveja em mesas quase lançadas ao espaço sobre o rio Acre.

Em frente, uma das dezenas de Casas de Leitura (com centenas de poesias pregadas nas portas e paredes) que a cidade possui, que acolhe principalmente crianças. Além dessas casas, pelos parques espalham-se os Quiosques com bibliotecas que o povo utiliza a granel nos finais de semanas, feriados, fins de tarde. Admirado com a noite fresca? São os ventos que sopram da Cordilheira dos Andes, na crendice popular.


Crônica de autoria de Ignácio de Loyola Brandão publicada no Jornal Estado de São Paulo, dia 18/06/2009.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Foto do Poeta

Foto Beinal - Ac



TUFIC AO SOPRO DO ZÉ FIRO

Recorro a um truísmo para dizer que o poeta Jorge Tufic já se tomou numa figura legendária da poesia brasileira do século passado e do milênio que se inicia. Críticos e resenhadores do país, independentemente de tendências e opções estéticas, não têm negado aplausos ao desempenho literário deste autêntico mestre da artesania poética, acriano de pais libaneses, nascido no final da terceira década do século recém-findo.

Numerosos livros de poemas e de ensaios enriquecem sua vasta bibliografia. Jorge Tufic é desses autores que exprimem, através do poema, sua paixão avassaladora pela beleza e fugacidade da vida, pelo legado existencial herdado de seus antepassados mais remotos. Profundamente ligado às raízes, sem renunciar à fidelidade e aos apelos do tempo presente, o poeta insinua-se nos meandros das realidades do cotidiano para se encontrar consigo mesmo, com as razões ou sem-razões do poema. Ou para confessar em versos como estes, repletos de evocações do seu rio tutelar: "Menino ainda, escolhi o meu acaso! Segui uma nuvem que vinha das cabeceiras" (Zéfiro com Soneata Barroca, Realce Editora, Fortaleza, 2004).
Mestre incontestável do soneto, essa teia mágica que ainda intriga os pretendentes de Penélope, Tufic passa incólume pelas "perpétuas grades" (Augusto dos Anjos) dessa autêntica jaula medieval, com certeza uma das mais polêmicas de todas as modalidades de poemas já concebidas pela fantasia humana Os sonetos de Jorge Tufic são de uma leveza prodigiosa, e nisso reside um dos segredos de sua modernidade.
(Oportuno lembrar que o texto literário produzido sob o signo da norma culta é, necessariamente, terreno propício ao surgimento de numerosas figuras de sintaxe e/ou de pensamento, das quais é pródigo o idioma dos nossos ancestrais ibéricos. Essa opulenta nomenclatura de tropos faz parte do acervo arqueológico do próprio idioma, razão pela qual, na maioria das vezes, eles entram compulsoriamente na poesia ou na ficção sem que os autores tenham contribuído diretamente para isso. Seria utópico imaginar que a verdadeira poesia dependesse, aleatoriamente, de eventualidades ornamentais. Não seria absurdo imaginar que esses arquétipos podem ser encontrados até mesmo numa tediosa exposição de algum balancete sobre lucros bancários.)
Poeta de muitas andanças pelo Brasil e outras paragens do mundo, espírito inquieto num corpo de beduíno, Jorge Tufic assimilou imagens e recordações dos lugares por onde passou. De tal modo que em seus poemas arrulham pássaros e regatos, rios e lagos que escondem mistérios, lendas de sereias e visões encantadas, duendes, feiticeiros e outros seres fantásticos que habitam nos troncos diluviais da floresta amazônica. Além de colméias dos tempos da criação do mundo, construídas de fragmentos de diamantes lapidados. Sem falar nas flores exóticas cuja beleza e perfume enfeitiçam os homens, peixes, insetos e animais que se acasalam ou hibernam nas grutas, à espera que os estios acordem no fundo dos lagos.



No primeiro poema de Zéfiro, Tufic já celebra o rio tutelar: "Este rio profundo, mas / nem tanto como a noite e as palavras / que dormem nas conchas do lodo". É a saga do menino que vai descobrindo paulatinamente o mundo poroso das águas. "A incansável descoberta dos mapas/ nomes que foram sendo trocados/ passaportes vencidos". A referência a passaportes sugere que o menino já trazia, dentro de si, as encruzilhadas, rotas e caminhos que deveria percorrer ao longo da vida. Ao ouvir predição de pessoa estranha, segundo a qual haveria de ser famoso, deixou "que o menino ficasse ali/ para sempre / coberto de vagalumes". O memorial do menino prossegue em seu lirismo minucioso: "Os morcegos de Sena Madureira / tinham asas de eucalipto.! Quando estas árvores foram derrubadas / eles passaram a dormir nos alpendres./ E a insônia tomou conta das janelas". O poeta confessa que nasceu numa rua chamada Amazonas. "Ficava perto do rio/ perto do mercado./ Era a rua mais perto do mundo". A rua em que o menino dialogava com o futuro poeta nas esquinas do sonho.
Por esse tempo, Tufic contemplava "A noite pública / sobre telhados particulares". Zéfiro com Soneata Barroca termina com o poema XIX. Um soneto no qual o poeta lavra esta inscrição para os tempos vindouros: "sou formiga, sou fonte, sou texugo/ larva na sequidão dos necrológios/ Quem foi ao bosque, livre-se dos ódios / que outros lugares roubam-me do estudo; ali estão nossos ossos e o veludo / das luas sobre tantos episódios". Restaria uma alusão especial aos treze sonetos de que se compõe a Soneata Barroca. Trata-se de poemas da melhor qualidade, seja pelos aspectos formais ou pela clarividência com que o poeta celebra as metamorfoses do cotidiano, onde muitos de nós naufragamos naqueles "instantes sem razão e sem verso", a que se refere Carlos Drummond de Andrade.
Sempre imaginei que os verdadeiros poetas são bons em tudo o que fazem. (Deixo aqui a ressalva de Horácio, em A Arte Poética, segundo a qual até mesmo o bom Homero tem o direito de cochilar algumas vezes.) Pouco importa que escrevam poemas rimados e metrificados ou poemas em versos livres, sem medida e sonoridades coincidentes. Na épica, na ode, na elegia, no epigrama ou no madrigal, o verdadeiro poeta sempre diz a que veio. É o que acontece com Jorge Tufic, que oportunamente publicou plaqueta à maneira dos repentistas nordestinos ou dos chamados folhetos de cordel. Com o mesmo "savoir-faire" com que escreve poemas eruditos, onde celebra o amor, a vida e a morte sob o viés metafísico, Tufic canta em tom de menor intensidade, diversos outros assuntos ligados à natureza, ao ser humano e aos bichos de modo geral. Um exemplo de sua verve nessa vertente caudalosa da poesia popular: "Ao som, portanto, maduro/ dessa batalha encourada, / visto a roupa do vaqueiro, / seu gibão, sua toada / e curto o couro dos bichos / que morrem de madrugada".
Tufic está por dentro dos saberes e feitiços dos pajés, pessoas dedicadas às reflexões e estudos dos fenômenos da natureza que se revestem de conotações sobrenaturais. Segundo o poeta, em Quando as Noites Voavam, "os pajés costumam ver uma escada que tem a ponta no setestrelo e a base na fonte sagrada que alimenta as reservas do líquido primário" (p. 43). Logo mais adiante, esta informação para iniciados em estudos amazônicos: "Pelas bordas da fonte, rãs se petrificam de olho nos mosquitos. E a linfa, de alegre, não pára de cantar". Desconfio que o engenhoso Tufic teria sido eminência parda de algum pajé para tratar de assuntos relacionados com bruxarias e outras coisas desse tipo. A segurança com que trafega nos labirintos e mitologias da selva lhe confere o diploma de pós-graduação nessa área inacessivel ao comum dos mortais. Vejam a intimidade com que fala o poeta dos poderes da ¨Cobra Grande, que ajuda o boto a entrar nas moças surdas aos conselhos dos pais". Pelo discurso poético de Tufic, a gente fica sabendo que "os filhotes da Cobra Grande deixam a barriga da moça" que se deixara seduzir ... "A água vai subindo, engole a casa. Nas palhas que submergem, cobrinhas arrastam seu avô para o fundo das águas". Surrealismo à flor da pele.
Poderia escrever páginas inteiras falando dos poemas amazônicos desse acriano de raízes libanesas. Ele sabe das coisas e faz uso das melhores estratégias formais para transmitir ao leitor seu legado de saberes, como se personagem principal das lendas que nos conta de forma absolutamente sedutora. Na introdução do livro Quando as Noites Voavam, Tufic esclarece que suas crônicas (ou poemas) tiveram origem no "foco temático" da obra de Antônio Brandão Amorim, intitulada "Lendas em Nheengatu e em Português. Tufic nos brinda com autêntico trabalho de recriação desses mitos e lendas que desafiam a voragem e fugacidade dos séculos.
Em livro lançado recentemente por editora de Manaus, de autoria de Gaitano Antonáccio, fica-se conhecendo melhor a história e as origens do homem e do poeta Jorge Tufic Alauzo, como também das lutas do povo acriano para conquistar sua independência política. Como a grande maioria do povo brasileiro, purgou seus pecados na condição de inspetor fiscal do Ministério do Trabalho, mas não permitiu que lhe seccionassem a veia poética nem que o esmagassem nas engrenagens da burocracia, cuja aridez nos permite sobreviver por algum tempo, mas sempre nos deixa marcas indeléveis no corpo e na alma. O opulento currículo que hoje ostenta, constituído de títulos honoríficos, prêmios literários, medalhas de mérito, diplomas e certificados - tudo isso dá testemunho vigoroso da carreira ascendente do funcionário público e do poeta, figura admirada e respeitada em todos os estamentos da sociedade e do mundo intelectual do país. Por tudo o que escreveu em prosa e verso, pela coerência e limpidez do seu depoimento de ser humano, de humanista e de poeta, dou-lhe nota dez. "Cum laude".

FRANCISCO CARVALHO