sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

SARAH RODRIGUES, prefácio de seu livro

A ALDEIA, O CAIS E A PARTIDA
Jorge Tufic

São raros, hoje, os textos de poesia que não temem a crítica por assumir uma postura independente da parafernália daqueles que estão mais para as letras de música pop, do que mesmo para uma lírica moderna ainda em paz com a arte do soneto, do verso livre, das redondilhas que lembram Rosália de Castro, Florbela Espanca, Auta de Souza ou Cecília Meireles, a par de cânticos e louvores da terra, quase todos evocativos de Ronald de Carvalho e Judas Isgorogota. Pois este ¨Poemas para minha aldeia¨, de Sarah Rodrigues, traz-nos de volta as delícias de todo esse cancioneiro perdido entre as névoas de um passado recente, sem, contudo, deixar de ombrear-se aos maiores de nossa atualidade, quer pela escolha e desenvolvimento de seus temas, quer pelo senso lapidário de suas estrofes solares, com maior empenho formal quando elege o soneto como seu modo predileto de forjar os momentos eternos da vida e da morte. Exemplos disto iremos encontrar naqueles intitulados de ¨O corpo da paixão não terá sono¨, ¨O olhar se perde agora na moldura¨, ¨Coração deserto¨, ¨A velha seringueira¨ , o dedicado a seu pai, para citar apenas alguns de uma série realmente antológica. Os demais são poemas intercalados que tratam de um cotidiano que oscila entre os painéis citadinos ou periféricos, e as raízes amazônicas : seu amor à terra, com a imagem do rio, das paisagens, dos fenômenos cromáticos e meteorológicos, num diálogo permanente de quem ama a utopia e sabe cantá-la tão bem quanto os pássaros mágicos do lendário nativo. Ou seja, daquele que só os poetas compreendem nas vozes da natureza.
Abrem-se vários os ângulos de análise e surpreendentes descobertas, através das quais a poesia de Sarah Rodrigues vai-se entregando ao leitor deste livro, não tendo passado ao largo, para Jurandyr Bezerra, ¨a palavra com a significação própria, preocupando-se menos com a imagem simbólica ou com a plurisignificação verbal¨; e mais adiante: ¨sabendo movê-la como o canto e conhecendo o lúdico que ela, a palavra, pode representar¨. Assim sendo, aparentes lugares-comuns serão utilizados no entremeio dos blocos vérsicos, apenas enquanto o estalo do poema adquire a carga necessária para chegar ao final. Neste ¨Aqui jaz a lua¨, que também não passa em branco ao decano da Academia Paraense de Letras, temos o seguinte fecho: Aqui jaz a lua / minguante em pedaços / nua em meus braços / num quarto crescente. O declamatório e o contido, as baladas e poemas de reflexão profunda, a exemplo de ¨Tarde de Chuva¨, e lamentos como ¨Chora, Belém¨, dentre tantas outras jóias desse relicário poético, são rumores de uma única nascente afetiva e telúrica. Daí a tônica do amoroso que reivindica a esperança que se debate entre a máquina que tudo destrói e os pobres nichos sagrados extintos pelo fogo.
Compõe-se a obra de 29 sonetos e 35 poemas, aqueles no ¨estilo petrarqueano¨ e estes de ¨formas diversas¨, podendo-se ter uma idéia do roteiro estético-criador percorrido por Sarah, ainda e sobretudo com a primazia dos secretos estigmas e azulados cenários na configuração dos contrastes da própria existência humana, uma síntese dialética em que a poesia ou a busca da metáfora insubstituível, ou, ainda, ¨o caminho do poder ir sendo¨, como quer Bandeira Tribuzi, celebram as rosas de cada amanhecer e ¨o social enquanto arte¨, na feliz expressão de Nauro Machado. Da saga inteira, portanto, basta-nos pinçar, ao mero acaso, dois exemplares apenas de quantos enriquecem estas páginas – um soneto e um poema de pequeno porte -, para que todo um corpus nos seja revelado. Trata-se de duas obras primas, ¨Eu e o Mar¨ e ¨Vazio Inverno¨, nas quais se manifesta o arrojo das imagens ou impressões do mundo, irradiando-se de ambas as mais inusitadas sinestesias, metonímias e hajam figuras mais, consideradas de pensamento. E aqui chegando me permito transcrever, a seguir, estes conceitos de David Daiches: ¨Não existe um método certo para tratar os problemas literários, uma atitude única para abordar as obras de literatura, capaz de proporcionar todas as verdades significantes que lhes dizem respeito. A crítica é sempre conjectural, parcial, oblíqua. Isto não significa proclamar, de modo algum, a inexistência de uma escala de valores, ou que devamos apelar para o mero gosto pessoal, o vago impressionismo, ou um simples arrebatamento sentimental¨. Entrementes, não sendo propriamente um crítico quem escreve este prefácio, seja-lhe permitido extravasar como deve as sinceras emoções naquilo que bate com o seu eterno aprendizado, jamais lhe tendo sido possível conter-se diante do amor, nem das lágrimas, nem da renúncia. Como neste ¨Soneto de uma Saudade¨, da mesma Sarah Rodrigues:

De minha alma a paixão te foi servida
e o que ficou de nós, dói-me dizer,
mas é saudade a síntese colhida
no orgasmo solitário do meu ser.

Que mais no amor eu tenho que sofrer
para que amando o sonho tenha vida?
Traga teus lábios nus, dá-me a beber,
e mate o que nasceu da despedida!

Guardei-me na esperança te esperando,
sofrendo pelo bem de estar te amando;
tão certo de que certo a tua vontade!

Mas hoje, infelizmente, hei-me ao tormento,
calada nessa voz de sentimento
e pregada na cruz desta saudade!

Ressalte-se, neste breve seguimento, a espantosa versatilidade da autora, que também dá lugar ao esquivo soneto alexandrino, além de inserir um glossário completo de termos da região amazônica, o qual, raro no gênero, poderá servir como guia em outras andanças bibliográficas a serviço da pesquisa do folclore e das lendas coletadas pelos etnólogos e historiadores da gleba de Bahira, Makunaima, Ajuricaba, isto do lado de lá; do lado de cá estão esses transfigurados entes de nossa estima e profunda admiração, cujos nomes rebrotam do mais puro afeto e das mais gratas lembranças de nossa juventude: Bruno de Menezes, Nazareno Tourinho, Alonso Rocha, Jurandyr Bezerra, Agildo Monteiro, Georgenor Franco, Benedicto Nunes, Max Martins, Rui Guilherme Barata, entre outros amigos e mestres das décadas 50 e 60 do século XX! O que mais dizer, enquanto se retarda o vero prazer dos leitores, bem aqui ao lado? Ora, bem...
A segunda e demais leituras dos poemas e sonetos deste volume, foram feitas como quem lê uma partitura. Seria a arte ou o exercício de ¨olhar¨ os sentimentos da autora, medir-lhe os sonhos travadas pelo arbítrio da linguagem, auscultar-lhe as enormes potencialidades que lhe restam escondidas por trás deste verdadeiro êxito em sua estréia como poeta. Enfim, o que já é, ressoa e cresce à medida que lemos e avaliamos sob o rigor da experiência. Ela começa, de fato, por onde muitos terminam. Senão, vejamos: quem de nós, bastante maturados e surrados pelo ofício, não assinaria alguns destes sonetos e poemas dessa coletânea que, a partir de agora, hão de ver aqueles que a julgaram e lhe deram o parecer da ilustre Academia Paraense de Letras, como será recebida por gregos e troianos. De certo e sem exagero, com palmas merecidas e louros tecidos pelo carinho dos deuses.
A aldeia torna-se metrópole, ganha o espaço das grandes partidas, conquista o mundo.

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